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quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Com água pelo pescoço

Kassab Prefeito de São Paulo, tentou explicar as enchentes com a mentalidade de sua classe social, expondo um abismo entre o poder e o povo


O prefeito Gilberto Kassab quase se afogou na enchente de questionamentos que sofreu em virtude da resposta distante à pergunta sobre o caos próximo causado pelas enchentes. E, depois, pela demora em visitar o Jardim Romano, na zona leste, ruas e casas invadidas pela água suja do transbordamento do Tietê. Ao uso da palavra caos pelos repórteres, negou-o, fazendo um relatório técnico completamente fora de hora sobre o acerto e a eficácia de medidas para contenção das águas em determinados rios da cidade. O relatório podia ser correto, mas o momento pedia outra resposta em face da aflição que alcançava milhares de trabalhadores com dificuldades para chegar ao trabalho ou voltar para casa, as ruas cheias de água, o trânsito impedido ou dificultado, pessoas em perigo.
A coisa se complicou dias depois quando perguntado por que não estivera no Jardim Romano, cujas casas estavam inundadas. Respondeu dizendo que já fizera três voos de helicóptero sobre o bairro para avaliar a extensão do problema. Na verdade, o que queriam saber é por que ainda não visitara as casas dos moradores. Provavelmente, tanto as medidas técnicas para conter as enchentes quanto o sobrevoo no bairro são mais apropriados para tomar decisões, mesmo as de emergência, do que falar em caos e do que entrar nas residências inundadas. Mas não é isso que conta em situações como essas. Economista e engenheiro, Kassab reagiu de acordo com os parâmetros dessas profissões e com a mentalidade de sua classe social. Ao fazê-lo, expôs o abismo que não raro separa o poder e o povo.

Isso não é uma questão de partido político. Marta Suplicy, quando era ministra do Turismo, em 2007, pagou alto preço por usar expressão imprópria, ao se referir às vítimas dos congestionamentos e atrasos nos aeroportos do País, com a sugestão grosseira do "relaxa e goza". Uma resposta imprópria pelo descabido da imagem e pelo nenhum apreço pelas vítimas do caos aéreo, muitas tendo prazos e horários a cumprir, gente que não estava brincando de aviãozinho. Resposta que expressa uma mentalidade de elite, a da alta extração social da então ministra.
No dia seguinte à manifestação desastrosa de Kassab, Lula, em São Luís do Maranhão, falando de improviso na assinatura de contratos do programa Minha Casa, Minha Vida, disse que queria "tirar o povo da merda". Foi ovacionado, apesar da violação dos critérios de contenção e decoro do que deve ser a fala do presidente da República, o caso, porém, tratado como mais um divertido deslize do governante.
A diferença de reações entre o que aconteceu com Kassab e o que aconteceu com Lula, independentemente dos problemas substantivos que cada caso encerra, está nas ocultas determinações que regem a conduta dos atores, como num teatro. Kassab se revelou mau ator porque seguiu à risca o roteiro de seu desempenho como prefeito, pois não compreendeu em tempo que o cenário havia sido mudado, dominado agora pelas apreensões e emoções do desastre. Nem sempre os governantes entendem com a rapidez necessária a pauta cambiante do poder para falar e agir de conformidade com a conduta que o momento pede e a única que pode ter sentido naquela circunstância. Lula, por seu lado, revelou-se bom ator, ainda que incorreto na expressão que usou, justamente porque violou o roteiro prescrito para quem governa.
Por que o que é lícito para Lula não é lícito para Kassab? Porque aqui, no entendimento popular, os políticos são originários da elite e governam em nome de uma concepção de mando do tempo em que as relações sociais e políticas eram muito mais desiguais do que são hoje, em que governar era, para o homem comum, equivocadamente sinônimo de mandar e ser governado era sinônimo de obedecer. Algo herdado da cultura da escravidão, distante, portanto, da concepção democrática de que tanto governantes quanto governados devem obedecer à lei e não a pessoas.
Lula nasceu, politicamente, do grande e difuso movimento que no último meio século fez da massa dos desvalidos sujeitos políticos, não necessariamente sujeitos da democracia, mas sujeitos de partidos e do partidário. Ainda que pobre de civilidade, esse advento é um avanço na história política do País. Nesse movimento criou-se uma contracultura que equivocadamente fez da pobreza um mérito e da ignorância uma virtude. Lula com frequência deprecia a cultura, faz apologia da falta de formação universitária, que não raro reputa inútil. Fez isso no mesmo discurso do Maranhão, minimizando a importância dos livros.
O aplauso às impropriedades em pronunciamentos de Lula é aplauso às suas funções desconstrutoras do discurso convencional da política, que expressam a rebeldia dos simples. Os erros de português e as imagens equivocadas, como em fala recente sobre as mudanças climáticas, acabam sendo encarados como manifestações positivas de desconstrução e crítica das erudições e das contenções rituais do poder, supostamente inúteis. Nela afirmou ele que Freud já teria dito que o mundo é redondo e que, por ser redondo, mesmo países, como o Brasil, que estão longe das áreas problemáticas do clima, no giro da Terra, quando por lá passam, acabam sendo alcançados pelas intempéries. Lula é julgado segundo as isenções próprias dessa inversão de valores políticos, blindagem que os outros não têm.

Tanto no caso de Lula quanto no caso de Kassab o que, de fato, está em jogo é a dimensão litúrgica do poder, importante em países como o nosso. No Jardim Romano o que os moradores queriam era a presença física do prefeito em suas casas, a vivência visual e direta do drama, para sentir-lhe a solidariedade de corpo presente, o que torna irrelevante o bem governar da figura liturgicamente ausente. Em São Luís, o palavrão descabido foi a expressão simbólica da política liturgicamente encarnada na figura do governante porque se expressa por meio dos mesmos palavrões do povo. Recurso que não resolve problemas, mas acalma carências que aqui se tornam diariamente impolíticas mediações políticas.
*Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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